sábado, 2 de abril de 2011

Morris Mathaia Domínica



Morris Mathaia Domínica chega todas as noites a casa e brinca ao seu século XVII, com um gato que finge ser um príncipe.
As horas passadas naquele maravilhoso equívoco dão-lhe ares de marquesa de periferia, fazem-na passar por proprietária de um improvável futuro que simulasse o passado com perfeição e veneno, inscrevem-na num magnífico palácio coerente com as suas mais altas expectativas, e obrigam-na a um idioma oblíquo e antigo e a usar um longo e ansioso vestido, que, tal como um aforismo, é extensível a tudo, menos ao tempo incerto da sua terrível benevolência.
Pelo menos três vezes por semana Domínica agride o século XVII, pendura-o com uma mão e imobiliza-o perto da sua atitude raríssima, enquanto a outra mão se afunda na flor do seu mais profundo insucesso.
Domínica talvez fosse mais feliz se o exercício do seu erro se detivesse onde ou quando ela própria termina. Continuaria a ser uma valente deprimida, é certo, para quem a vida apenas é o que é, sabe ao que sabe, vale o que vale, mas talvez assim evitasse o requinte do choque que uma inteligência superior sepulta numa mesma natureza reactiva e não complicasse tanto a sua tristeza, nem tivesse tanto medo de a assumir.
Agora, depois de brincar ao seu século XVII, com um gato que finge ser um príncipe, Domínica dorme por fim.
Neste momento, Domínica sonha com a elegância negra do seu século XXV.

2 comentários:

  1. Caro André:
    Continuo a ler com muito interesse os seus poemas, cuja originalidade já sublinhei em comentários anteriores. Para melhor caracterizar esta originalidade, eu atrevo-me a designar a sua poesia como "poesia desconcertante", uma vez que o leitor está sempre a ser submetido ao desafio da surpresa em cada palavra e em cada verso.
    Publiquei o seu poema "Á síndrome de Setembro" no meu blogue, o Alpendre da Lua, sendo esta a melhor homenagem que lhe posso prestar.
    Um abraço
    Alexandre

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