quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Os espelhos insones



Os espelhos não dormem. Não sou eu que o digo, é Augusto Monterroso, um dos principais causadores da melhor literatura guatemalteca do século XX, num texto minúsculo – como, aliás, foi quase sempre seu apanágio.
Em “El espejo que no podía dormir”, o protagonista é um espelho de mão que associa a ociosidade e o repouso, de que tem sido vítima ultimamente (!), ao mais implacável sentimento de exclusão. Esse sentimento é agravado pela forma como os outros espelhos vêem nessa debilidade um motivo perfeito para troçar da sua inquietação infantil, minutos antes de mergulharem no seu próprio abandono, já fechados na cómoda do quarto, dentro do gavetão.
O texto termina em 6 linhas, a última palavra descreve o espelho infeliz como “neurótico” e Monterroso deixa o leitor a pensar.

Ainda que o autor sublinhe que à noite todos os espelhos eram guardados no gavetão da cómoda, para aí exercerem, completamente às escuras, a sua função ignorada – reflectirem a escuridão – eu não me conformo que a consciência os deixasse padecer assim de um sono tão descansado.
Estou certo de que a memória de um espelho não é abalada com facilidade. Durante o sonho, (porque os espelhos também sonham, libertam imagens), as coisas por ele reflectidas uma vida inteira reaparecem-lhe à tona da sua superfície gelada: restos de rostos e vidas mal maquilhadas, indecorosos fragmentos da nudez humana, pequenos crimes, saliências, pontos negros, manchas de batom, salpicos de saliva e neve falsa, a compelida contemplação de um deserto num móvel velho, o percurso do bolor numa porta fechada, a fissura crónica de um tecto, um enorme pedaço de cal que ameaça cair todos os dias, precisamente às seis da tarde…

2 comentários:

  1. então não pode o espelho dormir (fragmento da eternidade) numa sonolência absurda que seria viver?

    ResponderEliminar