segunda-feira, 18 de abril de 2011

Madrid, enquanto Rafael Seno dormia

Apesar de já não contar com o amor e o beneplácito da época, Rafael Seno dormia. Tudo nele funcionava com a terna preocupação de pequenos dispositivos capazes de o predispor a fazer qualquer coisa que o arrancasse de vez da sua terrível batalha diária de “provador de experiências negativas”, afinal, trabalhava como porteiro e ascensorista num edifício velho, triste e ostensivo da Gran Vía, do topo do qual assistia à consumição de Madrid, o centro modernista de Madrid, como um mapa pusilânime e fraudulento, cheio de fissuras e pequenos derrames nos bairros mais congestionados pela boémia, palco de inábeis tribos suicidas. E porque accionava predisposições e dispositivos, depois de ter accionado um interruptor que lhe acendeu o sono e a liberdade faminta do seu último suspiro, Rafael Seno adormeceu. Ele era agora a vítima perfeita de um ilustre e maldito despojamento infinitamente multiplicado pelas ruas emaranhadas do seu equívoco, muito perto da praça onde tudo desaprende a ser. E nessa praça, tão parecida à de Cibeles, ele era a opção pelo seu desaparecimento nítido, e a prova viva, mas ausente, do seu reaparecimento numa outra cidade qualquer, numa cidade ocupada pelos seus mais belos desejos nazis.

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