domingo, 14 de março de 2010

A casa (parte I)



É muito provável que dezenas de pessoas
estejam agora escrevendo a palavra provável.
Nuno Ramos - Ó

Estás sozinha, numa casa com mil quartos e não sabes em qual deles deves começar a morrer melhor e entrar. É fácil. A opressão leva-te à porta principal, depois à pequena chave pendurada em cima, à direita, ao lado do reflexo neutro da tua claridade tombada, à margem do teu lago virtual, e, finalmente, a tua inteireza inclina-se toda para o quadro da electricidade. Começas a jogar.
Acendes todas as luzes da casa. A casa perde depressa alguma ascendência e velocidade, agora que os seus milhares de metros quadrados estão expostos à nudez e escapam à extinção. Todos os detalhes estão agora escandalizados. Mas os objectos iluminados não deixam de lutar, atiram-te imagens à cara e pedaços da sua imobilidade ao coração, cospem-te, sem cerimónia, a sua identidade rasgada e o seu capital social.
Regressas ao princípio do corredor sem fundo onde antes estavas e sentes que uma praga de olhares te vem parar ao olhar, insectos minúsculos que deterioram a espada da tua acção imediata e accionam memórias ilegais. Começas a correr, como uma louca, com as pernas e os braços dessincronizados, na direcção oposta àquela de ti que ficou para trás, atenta e desincorporada, e de repente resolves parar.
Escolhes um quarto, o trigésimo terceiro, por exemplo. Abres e abraças a porta do quarto. Um raio de luz destaca uma cama dissecada, um armário velho vomita cobertores, vinagre e desarrumação, um quadro mal pintado à mão mal pendurado na parede oposta à cama, uma jarra de flores envenenadas, um cheiro a sexo, a colmeia e a senilidade total. Diriges-te então ao armário. Perguntas ao espelho quem és e o espelho devolve-te uma indiferença de minissaia, lábios pintados e risco de se estilhaçar. Abres a outra porta do armário. As madeiras rangem e quase que cantam. Dentro: o cadáver de um fato de anjo e um acontecimento de origem etnográfica, agulhas, cabelos e outros instrumentos de desaire ritual.

Pões-te nua num instante. A saia é sabão a escorregar-te pelas pernas abaixo, depois do top tirado, só de soutien. Enquanto vestes o fato de anjo, sente-se o barulho das câmaras a focarem melhor o instante, ouve-se o sono teórico da noite lá fora e a tecnologia do momento dá ares de desgaste, porque não acede aos teus pensamentos intrusivos e principais.
Depois do vestido vertido, calças uns sapatos de tacão alto e vens à janela ver quem passa. Afinal, está na hora de esperares o teu príncipe, um lembrete no teu telemóvel disparara e faz-te acordar para essa espécie de desporto olímpico que dizes praticar regularmente, pelo menos 5 minutos por dia, há já alguns anos. A noite colabora e traz-te pretendentes de outras galáxias: o bafo oculto de animais nocturnos e consagrados, a compensação da temperatura alta, própria de uma noite de Verão, o rumor dos fígados da multidão na aldeia mais próxima, situada nas erogenias da montanha, que veio com intenções de voltar.

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