sábado, 21 de maio de 2011

Gritar






Às doze badaladas do mês de Agosto, em Paris, 1954, e mais precisamente num quarto de um homem que dorme, no sentido que Perec quis que um homem dormisse, no hemisfério norte do seu nada, algures no confessionário mais sólido da cidade, soa uma sirene, primeiro secreta, logo determinante. A sirene e o seu mundo estúpido, matemático e desorganizado acordam o senhor Jacques. Há, antes de mais, um alvoroço na cama, no quarto, o silêncio amarrotado de quem acabou de perder o sonho e a única tábua ou túnica de salvação.
Depois de entrar na máquina que o expulsou do sonho e o devolveu ao seu âmbito vulgar, o senhor Jacques acorda verdadeiramente, é obrigado a acordar, cresce dentro da sua idiotia de recém-acordado e sua, sua muito, como um náufrago. Os batimentos cardíacos, como pombas às cabeçadas nas estátuas das praças das cidades principais. A respiração, tecnicamente ofegante, mas sobretudo irreal, o fole de um fantasma, música rouca, olhos sem qualquer realce. Depois, a sensação do corpo mal ressuscitado. Mil vezes, a sensação do suicida falhado e a boca seca e a convicção rastejante. A sensação do irrecuperável, a arquitectura invertida do irrecuperável, e o espectáculo que a perda pode por vezes oferecer a um homem que sonhava que dormia, no sentido que Perec quis que um homem dormisse, no hemisfério norte do seu nada.
O senhor Jacques levanta-se, cede depressa ao deus da vertigem o seu medo das profundidades, serve o príncipe da diplopia geral, entrega-se ao mundo invertebrado do cansaço, do cansaço de quem acorda com a sensação do irrecuperável ao lado, na cama, teria ele mesmo ido para a cama com o cansaço, - pensa o senhor Jacques – ou aquela sensação do irrecuperável imune ao mundo invertebrado do cansaço, que ao som de uma sirene acordou um homem que sonhava que dormia, no sentido que Perec quis que um homem dormisse, no hemisfério norte do seu nada, seria mesmo real?
No deserto das respostas, os segundos passam, como séculos vindouros que chegassem ao presente envenenados. O que resta do sonho, ainda se arrasta com ele como um caimão.

Vemos agora o senhor Jacques a dirigir-se à cozinha, coberto de baba, teorias e cabelos ocasionais, teias de aranha e discordância acrobática e sentimental, disparate remotamente controlado e carência de sol na constatação, vemos o senhor Jacques a acender a luz, a agarrar num copo com aparente leveza, mas que um olhar mais atento descobriria nas terminações nervosas do vidro formas microscópicas de ambição variável, vemos o senhor Jacques a lançar o olhar para a lua que brilha enorme como um alarme, vemos o senhor Jacques despir a parte de baixo das calças do pijama, libertar a única parte que negoceia única e temporariamente com o seu último país em paz, vemos - nunca ouvimos - o senhor Jacques gritar pelo teu nome, gritar muito pelo teu nome, gritar.

Sem comentários:

Enviar um comentário