sábado, 28 de maio de 2011

O tempo do sol se pôr






Pedes-me que vá contigo ver a tarde rebentar, assistir a um espectáculo único, em estreia absoluta numa praia bem afastada da cidade e de toda a máquina de má-criação ocidental, um filme propositadamente mudo projectado em céu aberto, com uma narrativa demasiadamente linear e efeitos sonoros arcaicos, apesar de apresentar um elenco de luxo, entre estrelas prematuras e luas célebres pela sua perspicácia ornamental. Pedes: por favor, vem ver comigo a tarde rebentar, a tarde rebentar, a tarde rebentar, o teu telefone dá eco, mas o eco é só uma reflexão do som, nada mais, não tem substância, sentido, não é nenhum indício de nada, eu é que ouço tudo multiplicado, vejo tudo multiplicado, sinto tudo multiplicado, agora, com o meu telefone a arder nas mãos e os uivos transparentes do desejo que a tua voz adoça com coragem, agora que tu pedes em demasia, agora que me amarras ao valor acrescentado da tua chamada, pedaços de linhas trocadas e restos de álcool nas sílabas onde o sol demora a entrar, agora que me espancas com um convite apesar de tudo simpático, não fosse o facto de ocultar a bomba atómica debaixo de tanta metáfora desinteressada e um cheiro forte a ganância, realce e convicção.
A partir de determinada altura, já não pedes, persuades. A tua voz é uma câmara fechada, onde o eco corrige as suas perfurações com sangue e óleo de sândalo. A tua voz é perfeita, porque é performática. A tua voz elabora um pão minúsculo, altamente aliterado, que eu como, sílaba a sílaba, sem dar por nada. A a sua assimilação é imediata e rapidamente entra o sol em circulação. O pão tem a informação essencial que o teu pedido verbal transporta e explora em metáforas, com a excepção de actuar directamente sobre o meu sistema nervoso central, e suspender-me como uma droga suspende os membros e a resposta mais provável.
As reticências não duram eternamente, a tarde vai-se afundando e é preciso que eu diga qualquer coisa entretanto, mas eu continuo calado, tão calado como um afogado entrevistado em plena acção, Então? Anda lá. Passas primeiro por minha casa?, e eu, com a boca cosida, cheia de palavras derrubadas, aftas, pequenos cadáveres monumentais, eu murmurei qualquer coisa incompreensivelmente cómica, numa língua que nunca soube falar. Foi então que tu tomaste o meu grunhido como um sim (também o meu telefone dava eco, disseste, para terminar) e incluíste no silêncio final um “Até já” sonâmbulo, e foi também então que a chamada caiu desamparada e os pontos que eu tinha nos lábios desapareceram, sem mais, e o ser voltou ao seu lugar.

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