domingo, 30 de outubro de 2011

Saint-Anne de la Nuit



Sou pago para revelar o núcleo do sono e escrever a mais bela biografia inerte de Sainte-Anne de la Nuit. O meu trabalho é muito simples: consiste apenas em apreender as imagens que o corpo inapelável da santa segrega, enquanto o sono a sustenta através de finíssimos fios. E observar a expressão de um corpo desintegrado, atirado ao falso desinteresse que dizem demostrar por simulacros os ávidos corrigidos.
É mesmo muito simples, repare: eu sou pago para lamber a história de ninguém. Sento-me todas as noites confortavelmente numa cadeira, junto da cama onde estão os restos imortais de Sainte-Anne de la Nuit. As velas estão acesas e o silêncio, porque está próximo da voz de um animal extinto, solta uma brisa benevolente que expira impropérios, beija as chamas e torna as suas sombras na parede da caverna de qualidade muito superior à verdade propriamente dita.
Para alcançar o grau de santa, Saint-Anne de la Nuit só teve de ser boa em toda a extensão da noite e do dia, e, na altura do realce, ter um pé descalço espetado no vértice da partida e o outro mergulhado no tétano do êxtase.
Repare, é mesmo muito simples: eu sou pago para aprender o que da noite de De la Nuit continuamente se desprende e desdiz, a técnica daquela desmotivação parturiente, e observar o seu corpo nu, minuciosamente pousado no desdém, datado e assinado pelo infinito.
É claro que amo o que faço. Todos os dias vigio um corpo - percebe isso? - comento a sua nudez coberta de morte relativa, além de ter uma enorme permissão científica para o investigar, mexer, punir, instituir e destituir, é já inútil demonstrar por A mais B que aquele corpo não existe, lutar dignamente contra a sua terrível simetria.
Tenho de lhe contar só mais isto: há dias em que uma lenta e imóvel sublevação no seu sono conduz-me depressa ao incensado desatino; há dias em que a sua tomada de posição é tal perante a verticalidade ridícula da vida que sou eu quem se desintegra nessa tonelada de indiferença e areia que os mortos fingidos costumam vestir por cima da inutilidade fácil do seu marfim; há dias em que assisto ao hastear da bandeira da república popular da entropia, à proclamação da capital do desejo na praia privativa dos meus dedos, últimos habitantes das suas ilhas inadmissíveis.
Nesses dias, espero pacientemente a noite, e mal a invenção humana abandona totalmente o museu, deixo simplesmente de escrever, de resistir. Deixo as minhas roupas escorrerem pela cadeira, levanto-me, aproximo-me da cama e deito-me nu com Sainte-Anne de la Nuit.

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