domingo, 4 de dezembro de 2011

Paulo e Virgínia



O meu dia-a-dia é uma cadeira de Maldição Comparada, queixava-se Paulo, sentado na relva do parque, a Virgínia, que estava atenta à brincadeira mórbida entre duas crianças fatais. Mal acordo, a dissonância da vida ata-me os pés e as mãos – continuou Paulo – e a artrose da vontade não me deixa em paz. Demoro mais de duas horas a tentar desenvencilhar-me das teias de aranha do sono e só depois me levanto, aqueço rapidamente as articulações dos joelhos e vou aos saltos para a banheira tentar lavar-me por partes. Fico mais de três horas para ensaboar os genitais e outras tantas para os enxaguar. Se acrescentarmos as quatro horas e meia necessárias para produzir o resto da toilette, resta-me menos de 15 minutos para sair de casa antes que a noite venha aprisionar-me ainda mais.
Virgínia abria e fechava a boca com espanto. As crianças, ao longe, brincavam com espadas de verdade. Ao longo da narrativa desesperada de Paulo, Virgínia tinha assistido pelo menos a 6 ou 7 mutilações graves, uma das quais fora tão profunda e suficiente para decepar uma mão. Estás a ouvir? – protestou Paulo, fazendo círculos com os pés atados, pequenas devastações no relvado entre cascas de banana, o pacote de vinho entornado e o saco vazio do pão. Virgínia não respondeu. Levantou-se, deu alguns passos em direcção ao lago, apanhou um ramo de flores que jazia junto da sua última oportunidade. Depois, e sem nunca se virar para trás, entrou no lago. À medida que avançava ia perdendo os pés, as pernas, as mãos, a cintura, o tronco, os braços, o pescoço e finalmente a cabeça que também desapareceu, deixando no entanto a cabeleira negra à tona da água que o fogo relapso do ocaso viria a incendiar.

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