sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

O náufrago



O meu grito não surte efeito numa lógica isolada. Estou só, sou um pedaço de medo rodeado de sangue por todos os lados, e vivo num tempo invertebrado, no inferno das convenções: hoje é amanhã, amanhã será ontem e ontem foi nunca mais, mas nem sempre é assim e nem sempre será.
Não é bom, sobretudo para um náufrago, que nos troquem as memórias e as esperanças. As memórias não são apenas o artesanato da idade, mas as proposições precedentes, sem as quais seria absurdo e impensável a existência das imediatas, como as contas na constituição de um colar, os átomos na eficiência da matéria, a unidade na casa da integração. E as esperanças vivem da manhã da novidade, mesmo quando estamos matematicamente condenados, como eu. E se a novidade se repete já não é novidade. É, quando muito, uma representação congelada da novidade, ou um fóssil da novidade sem interesse arqueológico e sem qualquer consequência memoriosa válida na indústria vital.
Porque se, tal como tenho vindo a constatar, hoje é amanhã, então houve um incompreensível lapso entre ontem e hoje. Uma espécie de dia impostor interpôs-se entre ontem e hoje, negando-me o acesso ao tempo (ou à realidade?) em tempo real. E se, por outro lado, amanhã será ontem, então tudo se repete e eu sou produto de uma pálida eternidade sem contraste, prisioneiro de uma falácia ou de uma grave doença temporal, que trará consigo a degenerescência de tudo, inclusive, deste relato.
Mas, pior do que tudo, é saber que ontem foi nunca mais.

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