terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Os aborrecidos



Éramos fervorosos adeptos do submundo. Vítimas do tédio e da anomia que abraçava o planeta. Não fazíamos nada, excepto vadiar por objectivos. Tinha-nos sido dada a oportunidade da ironia, a simpatia pelo desprezo, o dom para nos desviarmos do imprescindível. E, claro, erámos vítimas do que escolhíamos ler. Éramos o género de vítimas que espreguiçam o seu martírio de papel ao sol de Inverno e tomam café e fumam cigarros e queimam as tardes a ler livros. Éramos ociosos de persianas corridas, atitudes de álcool e mp3. Discretos extraterrestres vestidos por dentro de Channel, Lovecraft e labirintos.

Dizer que odiávamos a actualidade é dizer pouco. A actualidade excitava-nos, e excitava-nos porque, tecnicamente, era tudo o que tínhamos. Mas a leitura compulsiva de autores que reagiram ferozmente contra ela, transportava as nossas miseráveis idealizações para uma espécie de legítimo nazismo performativo, que os outros deveriam conhecer, por sua vez, enquanto vítimas ainda mais imperfeitas, precisamente por dispensarem a consciência disso.

Quando nos sentíamos assim, inebriados por uma vingança veloz que nos rasgava o apelo pelo interdito, tentávamos dominar a fúria e recorrer a estratégias evasivas, deixando a noite inventar o excesso. Normalmente, os planos não saíam do papel e tudo permanecia. Não sei como pudemos pôr em prática um plano tão arriscado como aquele.

A partir da rendição da preguiça aos autores do nosso interesse, o tédio tinha arriscado superar-se a si mesmo e congeminar um crime. As nossas tardes explodiam naquilo que continuávamos a ler. Comprámos um caderno e escrevíamos. Não tínhamos à disposição mais do que alguns amigos em comum que também pareciam equilibristas rotineiros, sem nada mais a oferecer do que a sua bebedeira instituída, seguida de uma tristeza egoísta e interesseira, posta ao serviço da sua crescente decadência.

Não foi muito difícil juntá-los todos na casa de um deles, a pretexto de uma qualquer comemoração peregrina. Mergulhados num sadismo que dialogava com a tradição de uma forma inédita, nós fomos criando o guião para aquela noite, as cenas, a forma como cada um deles deveria assumir que se despedia.

E porque a humilhação é a mais maravilhosa maquilhagem da inveja, aquela noite durou dias, e aqueles dias foram passados assim, até que a polícia apareceu.

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