quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

O senhor sentado ao fundo



O vinho é uma hipérbole da vida e o senhor sentado ao fundo, com chapéu e fato de asas negro, já bebeu, pelo menos, 3 hipérboles e 2 digestivos. O café está um pouco escuro e confuso, mas reconhecemos-lhe o talento: é o único café que não permite senão clientes que dominem Buenos Aires, essa Paris com personalidade borderline e elegância em ruinas, assim como tudo o que povoava a fé dessa cidade nos exultantes primórdios do século XX.
O excesso ainda não foi condenado neste café. Afixado na porta pude ler: “Abierto el primer café para uso exclusivo de quien todavía viva en el alba del siglo XX”. Mal entrei, assistia-se ao fim de um tango dançado no seu próprio sumo, com dois rivais como protagonistas, feridos pelas navalhas do seu pudor solene.
Por vezes, os tigres de Borges assomavam à jaula da promessa, com um rugido proveniente dos corpos crus dos bailarinos que se friccionavam na madrugada da sua técnica e à flor dos seus papéis. Havia dezenas de clientes entorpecidos pela técnica dos bailarinos e a sensação de sauna no tempo era tremenda, muito fumo, vozes carnívoras, tudo isso aumentava em mim o efeito estrangeiro que eu queria que nunca tivesse existido quando naquela noite entrei naquele café e tudo aconteceu.
Depois de tentar o mais possível disfarçar-me de fantasma e ignorar a lava dos olhos vivos apontados para mim, dirige-me para uma mesa perto da do tal senhor com chapéu e fato de asas negro e pouco depois fiz sinal ao camarero que me trouxesse a minha primeira hipérbole desse dia.
O par de bailarinos deixava o lugar e despedia-se e o ruído do café tornou-se quase obsceno. Algumas pessoas levantaram-se, houve muitas mesas e cadeiras que se arrastaram e toda a gente olhava agora para mim. A música tinha acabado como uma fonte esterilizada pelos velhos costumes da estranheza sem limites e o silêncio aplicado à expectativa misturava-se nos rostos ainda mais entorpecidos do que da primeira vez.
Enquanto esperava pelo meu copo de vinho, reparei que o homem de chapéu e fato de asas negro também tinha descolado os olhos do que escrevia e olhava atentamente para mim. Não sabendo o que fazer, sorri e pedi-lhe fuego, com gentileza.
Doze segundos depois, tudo explodia.

Sem comentários:

Enviar um comentário