quinta-feira, 22 de março de 2012

Deboração




Débora leva uma maçã à boca, morde-a lentamente, até obter a harmonia perfeita, o reino que existe algures entre os crimes do sabor e a alegria dos dentes reencontrados na paz, e depois, ainda a mastigar, diz-me que a vida é uma perda preciosa, como certas variedades muito raras de diamantes, descobertos no Espaço por um náufrago incapaz de regressar às suas razões primordiais.
Eu fumo a única forma de inocência plausível na retórica pobre de um cigarro. A minha perspicácia está longe de ser essencial. Não tenho como dizer-lhe que não encontro palavras. O Inverno, lá fora, emoldura-nos o tempo e o alcance. Que alcance? O meu quarto é pequeno e fica facilmente empestado de fumo e interrogações que se aproveitam dos cabelos emaranhados do fumo para resistir ao silêncio que subitamente se instalou nas têmporas da dissolução. Débora está quase deitada na cama, o lençol cobre-a como um vestido improvisado, sem fim nem refutações. Eu estou nu, sentado na orla da cama. Fizemos sexo com muita miséria e aflição, apenas há alguns minutos atrás. Ela não fuma. Rói as unhas, morde maçãs. Está terrivelmente equilibrada. Sabe que as unhas, tal como as maçãs, mais tarde ou mais cedo, cairão. São exemplos de perdas preciosas, amplamente desirmanadas. Ela própria é uma perda preciosa. Os seus olhos denunciam agora a coroação de um ser total banhando-se na banalidade. É meia-noite no meu drama. E eu, sem uma só interjeição, continuo a fumar.
A chuva contra os vidros ajuda-me a formar uma fala. Mas essa fala são muitas e não me sai. Fico preso naquelas “perdas preciosas” de que Débora parece ter a tutela e a explicação. Fico preso nos cabelos desgrenhados do fumo, nas interrogações decapitadas das minhas eternas vacilações e continuo a fumar. A chuva cose no estertor do silêncio as crias infecundas da inverosimilhança. Eu esmago no cinzeiro o cigarro. Débora termina a maçã. O corpo dela procura uma nova protecção: um pai ausente para os seus aforismos bestiais. As roupas estão espalhadas um pouco por todo o lado, mas em poucos segundos ela regride a um estado anterior ao desejo e aparece completamente vestida à minha frente a perguntar-me secamente se a posso acompanhar até à porta, porque sempre está interessada nos mistérios declarados do amanhã. Amanhã? O que é o amanhã? O amor não suporta o amanhã. Amanhã é um filho deficiente de todas estas horas desencontradas. Pouco depois, ouve-se a presença falhar e a porta da rua a bater determinada. A chuva sustém, por alguns momentos, a respiração. O silêncio organiza-se em pequenos núcleos de derrota e milagre. Na rádio, Leonard incendeia a madrugada.

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