quinta-feira, 8 de março de 2012

Tristeza apocalíptica




Considerada a última forma de transcendência sobre a Terra, a tristeza era cada vez mais apreciada pelos países ricos. Em 2075, por exemplo, chegavam diariamente a Estocolmo inúmeros biochips, muito fáceis de implantar, carregados de tristeza. O problema era que o preço desses pequenos cursos biónicos de tristeza era também muito variável. Desde o kit de tristeza foleira ao de tristeza sublime, havia uma gradação infinita de tipos de tristeza disponíveis, segundo a mentalidade económica de cada um naquele momento. Nunca é demais recordar que em 2075 a riqueza de cada pessoa era já calculada em dias, não em meses ou anos.
As assimetrias revelaram-se rapidamente cruéis: havia gente momentaneamente muito rica que usurpava do tipo de tristeza sublime e desbaratava-a completamente. E havia o contrário. Gente que só tinha posses para adquirir um certo tipo de tristeza foleira e como organicamente exigia um tipo de tristeza superior ficava a ressacar num mundo de opacidade, riso hiper-real e indiferença.
Não foi preciso muito tempo para que alastrassem os roubos e as falsificações, a copiosa venda de tristeza no mercado-negro, os simulacros quase perfeitos. A cópia podia superar e até corrigir o original, mas nunca era um clone completo. O reflexo autêntico perdia-se no ADN estrangeiro e aquela que já tinha sido um dia a tristeza de alguém (ou definitivamente para alguém) jamais se adaptaria a 100% numa realidade genética paralela.
Foram relatados muitos casos de depressão desmedida, tristeza tirânica, apagamento iminente. Cada país cedeu gentilmente uma parte proporcional do seu território para criar campos de concentração para os sobreviventes. Uma vez isolados, estes mantinham com o resto da sociedade uma veloz impressão homogénea. Uma portentosa simulação do real operava muito perto, com centenas de actores e funcionários contratados que lutavam diariamente pela verosimilhança das conveniências e rotinas. Claro que havia alguns inquietos que eram policiados de muito perto pelo zelo extremo das medidas. Especialmente para esses foram criados mais chips com soluções de amnésia ou potentes engodos pacifistas, até que um dos inquietos resolveu nascer resistente e permanecer. E contou a já não sei quem o porquê do brilho sinistro das suas vidas.
A consciencialização ganhou tanta fama como um vírus. Ao saber-me perdido, reuni longas horas com os meus melhores engenheiros e pedi que me desenhassem um novo chip, um chip que me faria experimentar interminavelmente a sensação do suicídio, alterando-me o código genético, para assim poder escapar à total deposição sem qualquer arroubo de fuga, retractação ou arrependimento. Mas, pela primeira vez, senti o sabor do chip alheio, o cheiro da tecnologia previamente investida, o hálito da traição insurgente, e agora sou eu quem está do lado de lá da tristeza a contar tudo isto, sem lágrimas, para ninguém.

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