sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

A filha da lavadeira



A filha da lavadeira de Álvaro de Campos nunca foi feliz. Casou, já tardiamente, com um proprietário rural, não fez mais do que lavar, também ela, as fadigas alheias da vida, castigando as nódoas cada vez com menos coragem e detergente e perdeu a oportunidade de casar com alguém que um dia a mencionara tristemente num poema e erguera uma conjectura tão influente e decisiva que lhe havia roubado para sempre o sol e o sorriso.
Alguma insubordinação espontânea de carácter e maus humores intra-uterinos fizeram com que parisse apenas 4 filhos, dois dos quais morreriam à nascença atacados por uma estirpe muito rara de F.V.E. (Falta de Vontade de Existir). Carolina e Ezequiel, os sobreviventes, viveram apenas e respectivamente 28 e 33 anos. A primeira porque se debruçou demasiado das margens das dificuldades, depois de ter contemplado o seu rosto reflectido nas águas de um destino vazio. O segundo, durante a guerra inverosímil que travava diariamente dentro da sua embotada consciência.
Lídia Carolina Gentil, a lavadeira, e Diamantino Jorge Ezequiel, o marido, foram um casal exemplarmente ineficaz e infeliz. As agressões motivadas pelo mau vinho de Diamantino consolidavam um amor paupérrimo, com notas de humilhação consentida, restos de lama nas esperanças autênticas e óbvias divergências no seu melhor traje de domingo.
Um dia, ao fim de mais uma jornada, ao desabafar com uma amiga, quando o vértice do tempo tocava os seus 74 anos e 145 dias, Lídia manifestou a vontade de voltar a Lisboa, porque lhe faltava o cheiro do tabaco suado e a voz de um misterioso homem imiscuído. Três dias depois, as páginas mais negras dos jornais revelavam a sua fotografia.

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