domingo, 5 de fevereiro de 2012

O Sonho de Flaubert



Estava diante de uma porta fechada, tão nu como uma mão sobre uma cicatriz. Tinha a sensação de ter acabado de nascer naquele instante, não sabia se por graça ou infortúnio. Estava no exterior de tudo, parecia-lhe. Ouvia passos e música do lado de lá da porta, risos de sucesso, brindes ambiciosos e choque de perfis. A partir daí: nada. Apenas o mapa infecundo do céu, com graves estrelas escondidas. A toda a volta a noite vestida com um escafandro solene. E ao longe, muito ao longe, o triplo latido de um qualquer cérbero de província cruzado com um demónio-da-tasmânia sem dentes.
Começava a pesar-lhe a trágica responsabilidade de existir do lado de fora de tudo. Por detrás da porta, entretanto, continuava a cheirar a bailado e demografia: gente, provavelmente muita gente, homens e mulheres escoltados pela música, pelo suor, pelos perfumes, pelo brilho oblíquo das suas presenças tangíveis, provavelmente acendendo aqui e ali pequenos focos de intolerância e desejo. Determinado a perseguir os ruídos daquele enredo omisso, Gustave agarrou a música pelos cabelos e experimentou adivinhar o sexo dos habitantes pelo rumor dos passos perdidos, memorizar os cadáveres das palavras que ia compreendendo a custo, esmagadas no caos compacto dos volumes que se erguiam e formavam uma casa, uma imensa casa, afinal, (e, sendo assim, talvez estivesse prevista uma excepção ao interdito, aberta uma janela nas suas partes mais íntimas).
Gustave ouvia o corpo infinitamente reconstituído do vidro dos copos por onde os outros brindavam e bebiam os olhares de todos e a tentação de ninguém, e começava a desenhar, ainda que guiado apenas pela leitura daquilo que permanecia, a radiografia de uma festa, para a qual não tinha a menor lembrança de ter sido mortalmente persuadido. Estava prestes a compreender a sua intrusão e o papel da sua intrusão na ordem desconexa do mundo, quando se encheu de coragem e significado e resolveu tocar à campainha.
Os segundos que passaram entre esse seu último gesto e o abrir enigmático da porta praticamente não existiram. A porta abriu-se. Ao longe, distinguiu uma amálgama de corpos eufóricos e esbaforidos que se debatiam entre centenas de livros abertos e dispersos pelo chão. Havia pelo menos uma tonelada de nudez envolvida no centro da sala e uma pequena plateia de gente terrivelmente reconhecível, oriunda de todos os tempos e origens, assistia ao espectáculo com a luz acesa do seu zelo.
Uma mulher de ligas, tacão alto, um bosque líquenes no púbis e lábios a arder, com restos de espuma e serpentinas enfeitiçando-lhe a pele, conseguiu sair do tumulto, dirigiu-se à porta e disse-lhe ainda um pouco entorpecida:
- Seja bem-vindo, senhor Flaubert. Chegou mesmo a tempo de me criar e de me destruir.

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