quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Uma noite em Schadenfreude



Se um dia visitarem o país gelado da Inveja, não deixem de passar uma noite em Schadenfreude, uma pequena povoação nas margens do rio Nacht, conhecida pelo prazer mórbido que experimentam os seus habitantes ao constatarem os fracassos e as desgraças dos seus conterrâneos, tudo isto envolto numa atmosfera de festa, névoa e ingenuidade etnográfica.
Não se sabe ao certo quando é que esta tradição irrompeu do manancial de lendas que assombram desde tempos imemoriais a região. Contam os antigos que um dia um forasteiro, ao passar pela cidade, perdeu o controlo do carro e atropelou uma criança sobrenatural. A tremer, com o coração estrangulado, o forasteiro saiu cambaleante do carro e aproximou-se da criança para a tentar socorrer e salvar. Ao vê-la resignada à excepção, desistida e triturada, o homem começou a rir sem parar, o que mais tarde viria a prejudicar seriamente a audição das suas declarações em tribunal, mas que, por outro lado, lhe valeu um lugar amplo e sossegado num asilo de montanha, ao invés das minúsculas cloacas prisionais. A partir desse dia, Schadenfreude ficou assombrada pelo fantasma do forasteiro e da criança sobrenatural. Um pouco por toda a cidade, as pessoas começaram por se sentir atraídas pelo sofrimento ou pela infelicidade do outro. No início sorriam, quando alguém tropeçava e caia ao chão. Achavam graça. Mas depois, a coisa complicou-se e vieram as gargalhadas estridentes e as faíscas pelos olhos quando acontecia alguém adoecer, perder alguém querido, ou o emprego, ou a liberdade, ser roubado e violentado ou sofrer algum tipo de consternação particular.
Estudos mais recentes, no entanto, apoiados em técnicas imagiológicas avançadas, relatam a activação dos centros de recompensa cerebrais quando um qualquer habitante de Schadenfreude recebe a notícia de que um seu conterrâneo sofreu algum tipo de mal ou calamidade. A produção de oxitocina também aumenta significativamente, confirmam os mesmos resultados, em particular se o sofrimento alheio for prolongado ou encerrar em si a semente da ruína total. Em casos isolados, observou-se mesmo períodos de excitação sexual extemporânea, episódios de euforia atípica e fanatismo paradoxal em habitantes mais propensos e sentimentais.
O professor Adolf Von Stein, médico psiquiatra e eminente investigador na área, regente da cadeira de Sentimentos e Comportamentos Exorbitantes e Colossais na Universidade Central de Schadenfreude, vai mais longe quando afirma haver toda uma estrutura montada em segredo por alguns cidadãos para levarem a cabo, de uma forma ainda mais eficaz e organizada, a sua insaciável sede de gozo sacrificial.
“O povo de Schadenfreude – esclarece Von Stein – para além de macabro é também excepcionalmente criativo e passional. Sabemos que existem pessoas nesta cidade que são verdadeiros adeptos da tortura galante. Normalmente é gente com grande poder financeiro e prestígio intelectual, que se diverte a montar ciladas, arquitectar finíssimas teias originais, com o fim de conduzir terceiros a fins trágicos e monumentais, tudo isso para gáudio instantâneo e pessoal.
Ainda há bem pouco tempo, pude acompanhar a história de um homem que, após ter tomado conhecimento de que uma mulher da cidade nutria por ele um amor sincero e desinteressado, resolveu iniciar um processo de apropriação selvagem e tirar partido do sentimento desigual. Esse homem investiu uma soma avultada escrevendo, encenando e realizando um conto de fadas exemplar que não demoraria mais do que 12 horas até se autodestruir como as mensagens de alarme ou um sonho sobressaltado. O kit da sua maquinação incluía um jantar romântico, um anel de noivado e uma declaração faustosa e nupcial que culminaria numa noite de amor passada num palácio alugado que, para efeitos hiperbólicos de indução, seria para todos os efeitos o futuro lar dos amantes e da sua prole numerosa e iluminada.
O júbilo desta mulher atingiu durante as horas subsequentes níveis insuspeitos de plenitude e bem-estar, mas, no dia seguinte, apareceu morta, mutilada, à porta de um prostíbulo abandonado, tatuada pela indecência e pelo escárnio, com restos de gargalhadas presos aos cabelos desgrenhados, pousada numa espécie de imaturidade secular.

2 comentários:

  1. gostei muito do que li!

    Artur Soares Santos (primo da Dália)

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  2. Olá,

    Muito obrigado pela leitura e opinião.
    Mas não sei a que Dália te referes!

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