terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Kelda Ky



Tenho uma tendência para me apaixonar por mulheres inacessíveis de nascença e infinitamente desencontradas. Por exemplo: Kelda Ky.
Kelda vive em 2334. É natural dos Estados Oníricos da América e estrangeira em toda a parte. Tem uma profissão que nem ela própria sabe muito bem decifrar. Comunicamos há já muito tempo através da rede intertemporal. Os seus hábitos parecem-me sempre corruptos quando os contemplo à luz do meu século cheio de desgraças e vaidade. Ela, pelo contrário, tem piedade do meu tempo e das minhas circunstâncias, chegando mesmo a render-se ao riso e à informalidade quando lhe falo das nossas concepções e obstáculos gerais.
Quando lhe peço que me subtraia do futuro toda essa dimensão amorfa e desonesta de escuridão falsificada, ela entorna a conversa, desconecta-se da verdade, ou então pura e simplesmente recusa-se a prestar qualquer esclarecimento, alegando com isso poder sacrificar irremediavelmente os delicados circuitos temporais, favorecer a inconsequência e ilustrar a descontinuidade.
Apesar de tudo, ela vai-me contando como é a vida muito depois de amanhã. Kelda não tem um só corpo. Ela veste pelo menos um corpo por dia, como nós peças de roupa vulgares. Em 2334, a meteorologia perdeu a noção das conveniências e o clima muda de minuto a minuto, desenrolando as piores ansiedades e catástrofes. O planeta, tal como o conhecemos, não existe: “O espaço concreto desapareceu. Vivemos todos mergulhados num oceano de nada, em perpétuas penínsulas de mudança”.
Por vezes é muito difícil seguir os seus raciocínios, elaborar contra eles uma espada verbal. Kelda pede-me mil desculpas e experimenta reformular: “A morte quis anexar-nos.”
Eu sinto uma bela incompreensão por tudo o que ela diz, por tudo o que ela sabe, por tudo aquilo de que ela é capaz e incapaz. A submissão de que é feito o amor no meu tempo não me permite senão incompreendê-la e amá-la ainda mais. A sua inacessibilidade chega-me por vagas, arrepios e sintagmas adverbiais, normalmente muito tarde para que possa pôr um ponto final nesta relação e exigir de Kelda uma correspondência verdadeiramente presencial, uma responsabilidade incorporada, já lhe confessei que quero as vísceras do seu eco no meu âmbito, o carimbo no passaporte para a viagem à abdicação, mas Kelda ignora as cócegas da minha vontade e volta a entornar a conversa, a desconectar-se da verdade, a falar dos Estados Oníricos da América, do seu século e do imperialismo sórdido do tempo que nunca virá.

1 comentário:

  1. o António disse para eu vir aqui. Parabens André, gostei mto!

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