quarta-feira, 28 de março de 2012

Cinema assíduo



Uma máquina feroz projecta sobre um descampado algumas das mais belas avenidas, praças e ruas de Paris. Quando as imagens projectadas atingem o alvo apropriam-se do vácuo e da vastidão com a sua douta riqueza de algo, vão ao encontro da nudez desarmada, incorporam milimetricamente o espaço tomado, alastram, como uma mancha perfeita e voraz, e nomeiam as gentes, os propósitos e os lugares da capital.
A vida corre naturalmente nesses extractos de Paris, anos 1920-30, a julgar pelas indumentárias e veículos usados. O trânsito flui com normalidade na Avenue de l´opéra. O sol rompe a frágil fisionomia das nuvens na Place de la Madeleine. Há um furor sintomático de almas e máquinas contornando a Place de la Bastille, sob a indiferença mortal do Génio da Liberdade e do tempo indolor. Mas no cruzamento entre o Boulevard Montmartre e a rua com o mesmo nome vê-se um grupo de pessoas que teima em redor de uma carruagem de eléctrico descarrilada e um homem de chapéu provavelmente inanimado, estendido no chão.
Peço a Charles Dimanche, o homem por detrás do terrível projector, que escolha a perspectiva de um qualquer espectador próximo do acidente e me infiltre essa realidade. Dimanche é-me fiel. Sempre o foi. Um segundo depois estou em Paris. Com bigode, traje da época, vida própria e uma enorme apreensão. De facto, há um homem de chapéu, caído, a sangrar. Ao meu lado, uma confusão de figurantes ardem de pavor e curiosidade. O condutor do eléctrico parece ser aquele homem que se acocorou a um canto, os punhos fechados contra o queixo, o suor caindo-lhe pela testa pálida e os olhos esmagados pelo pudor geral. Na encruzilhada das vozes e dos ruídos da cidade percebo que o socorro está prestes a chegar.
De repente, sinto que o meu francês se apurou e uma mão apertar o meu braço. Viro-me e vejo um homem de olhos muito negros, com um bigode pequeno e educado: “vamos Dupin, assim vamos chegar muito tarde!” Não tive tempo sequer de me manifestar. Juan Desiderium Juan (soube o nome dele mais tarde) levou-me pelo braço, falava um francês consagrado, e não admitia uma explicação. Pelo caminho gritei e tentei libertar-me. Fiz de tudo para chamar a atenção de Dimanche, que do outro lado da realidade – tenho a certeza –, se divertia com a minha maravilhosa intrusão. Nada. Nem Dimanche, nem as autoridades locais e temporais faziam nada. Continuei assim, sacudido por Juan, até às portas do Sacré-Coeur.
Tinha visto durante o percurso, pelo reflexo nos escaparates, que estava obsessivamente bem vestido, como um derradeiro atleta da celebração. Quando cheguei à porta da igreja os convidados amontoavam-se. As reticências começaram a ser iludidas pelos factos. Já não tinha dúvidas. Era o dia do meu casamento. E eu estava muito longe de casa. O homem que me raptava devia de ser o meu padrinho, escolhido com a nobreza com que se escolhem os padrinhos e sem muita paciência para os meus subterfúgios lunáticos. Largou-me à entrada e depois desapareceu. As abóbadas ao som dos lustres dançavam. Pelo corredor central da nave central um arrepio emoldurou-me a convicção e levou-me rapidamente ao altar. A igreja estava cheia de cúmplices e de cânticos. Esperei alguns momentos sem saber que esperava. Quando, por fim, me virei para trás, Christine, vestida de noiva, estava já ao meu lado. A sua beleza transitava para os meus olhos como uma infecção abissal. O padre entrou em cena e deu início à cerimónia. Fiz-me hirto, sincero, impecável. Estava a acorrentar-me devagar. Os anéis foram trocados. No momento de confundirmos os lábios, Christine esfumou-se numa existência vã. E tudo tinha desaparecido da sua tenaz ostentação. A sala voltara a ser escura e solícita, com cadeiras vazias alinhadas na direcção de uma Paris projectada sobre um descampado promissor. As sórdidas gargalhadas de Dimanche, ao fundo, refizeram o mundo depois.

2 comentários:

  1. Gostei muito. Tens um jeito especial de nos levares para lá. E olha que isto, dito por mim, a quem quase nunca as palavras fazem ver imagens, quer dizer alguma coisa. Se me levaste, a mim, para aquela Paris, aquelas ruas e aquele casamento, o que não farás a alguém cuja mente se deixe preencher mais facilmente por imagens transmitidas por belas palavras...? Obrigada, André. Nunca tinha ido a Paris, e gostei muito :)

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    1. Olá, bem-vindo(a)!

      É um prazer receber aqui, no meu pequeno espaço de liberdade imagéticae conceptual, palavras tão delicadas.

      Um abraço

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