quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Auto-retrato com fantasmas e mamíferos



Eu e tu: o resto são fantasmas. Fábricas de lençóis aflitos. Empresas inadequadas ao mundo visível. A disfunção eréctil da promessa de aparição.
A sociedade aquosa e secreta dos fantasmas. Espécie de produto catabólico do omisso, que é o distintivo do amor e a pistola impalpável do mortal, que por mais amar o próximo se tornou efectivamente longínquo.

A casa deserta, continuamente adiada, sem episódios de maior relevo ou directrizes. Horas mais que malignas escoam do espaço interior a sua manutenção inevitável. A invertebrada mobília da noite. Os moluscos da insónia. A escuridão adesiva. O silêncio adesivo. A música da água morta nas canalizações. Passos imperceptíveis, dados em falso num plano sem gravidade nem resolução.
Tudo parece evitar-se a custos baixíssimos. Um aquário cheio de instantes destruídos, adaptados entretanto com as guelras da memória vã.

Eu e tu, dois mamíferos elegantemente despidos, maravilhados com as suas imperfeições ideais.
A luz da Lua que atravessa o postigo e descola imagens e desloca olhares. Técnicas nulas e mistas para acender a audácia, para ascender à audácia, como se estivéssemos mergulhados na pré-historia do ânimo e do aviso, no futuro trémulo da hesitação.
E no entanto, passeiam-se à nossa volta as formas plenas da desobediência em lingerie, influentes flores do interlúdio, os dejectos delicados da insensatez que já não nos assustam com a sua epilepsia mordaz.

2 comentários:

  1. Que inspiração André. Uma obra de arte para ser contemplada e amada.

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  2. Efectivamente a profundidade e abrangencia evidenciadas nestes pensamentos, simbolizam e retratam a tua capacidade infinita de vislumbrar o aquem e o além.
    Sublime...
    Assinado : João

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