quinta-feira, 3 de junho de 2010

A lenda do homem-algo





Parte de mim está vestida a rigor para o diálogo
e leva rosas na lapela e supernovas no epitélio
lingual e chocolates na mansidão para a sua amada.
A outra parte recebe estes presentes todos
ao pormenor no conforto de sua casa.
Depois escreve uma carta que a primeira parte
não pode nem ousa decifrar.
A primeira parte de mim parte-se em bocados e chora,
e o choro mancha-lhe a elegância, murcha-lhe as rosas,
apaga-lhe as supernovas e desmancha os chocolates.
Uma vez nua e consternada, a minha primeira parte
resolve mais uma vez contra-atacar
e usar a sua nudez e a sua consternação
a favor do bem comum e da lógica indivisa das galáxias
mas a minha outra parte e o seu universo continuam
em contracção e eu, aproveitando o intervalo
e o debate aceso entre o governo e a oposição,
tomo o partido do que está a mais
e um comprimido da classe dos inevitáveis
e vou-me deitar.

3 comentários:

  1. Liiiiiiiiindo...

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  2. André,

    Esse viver em dialética é a composição mais complementar dos nossos fragmentos.
    Que bela construção!

    Abraços.
    .
    .
    .
    Katyuscia

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  3. Este poema tocou-me em particular, pois as palavras entram no nosso mais profundo ser. As duas faces, a revolta que sentimos e ao mesmo tempo o não poder fugir daquilo que não queremos. A vida poderia ser melhor se não houvesse hipocrisia. Ai como eu gostava de escrever o que me vai na alma de uma forma tão perfeita como a tua.
    Fiquei com um nó na garganta, pois, de facto tocou-me bastante.
    Belo. lindo, verdadeiro e de uma sensibilidade que me faz voltar a escrever. Obrigada
    Vou lendo os teus poemas. Continua. A tua amiga Ninocas

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